Educação antirracista: o que é e como colocar em prática?
Estamos em 2023 e tivemos avanços consideráveis em questões como gênero, sexualidade, etc. Mas uma pauta que ainda precisa ser muito trabalhada e praticada desde cedo é a educação antirracista.
Para ampliarmos a conversa, trouxemos quem entende do assunto. Carla da Silva Francisco é coordenadora pedagógica, especialista em Ética, Valores e Cidadania na escola, e mestra em educação. Ela também criou para a Estante Mágica o projeto temático “Antirracismo: da escola para o mundo”.
Nesta entrevista ela nos conta o que é a educação antirracista, assim como sua aplicabilidade no ambiente escolar. Vem com a gente para saber mais. 😊
1. Desde quando você soube que desejava trabalhar com educação?
Sempre digo que nunca fui uma pessoa que quando me perguntavam o que eu ia ser quando crescesse, que dizia: “Professora.” Eu não tinha uma resposta pronta assim.
Mas quando tinha 18, 19 anos, prestei um concurso para o cargo de secretária de escola na rede estatal de São Paulo. Com 20 anos ingressei nesse cargo, numa escola de ensino fundamental na cidade de Guarulhos.
Aí no ano que ingressei, resolvi fazer pedagogia. Quando me formei, ingressei como professora na rede pública municipal de São Paulo e desde então, venho trilhando diversos espaços. Escolas, secretaria de educação, gestão de escola, enfim.
Ingressei na rede de São Paulo no ano de 2017 e trabalho nela desde então. Hoje sou coordenadora pedagógica em uma escola que fica na zona norte de São Paulo.
2. Eu dei uma olhada no material que você construiu pra Estante Mágica, o projeto “Antirracismo: da escola para o mundo”. Você pode contar como foi o processo de construção dele?
Tive muito prazer de fazer esse material, porque a educação antirracista é um tema que particularmente me interessa e que deve interessar a todos os educadores. Negros, brancos, todos nós. O racismo é uma realidade no nosso país, então não seria diferente dentro da escola.
Considerando que a Estante Mágica tem esse trabalho bacana de autoria, meu processo de criação foi pensar:
“Como vou trazer autoras negras e autores negros para essa discussão, de tal forma que as crianças se aproximem deles? E que assim elas possam perceber a perspectiva da valorização da história e cultura africanas e afro-brasileiras?
Assim, tenho sempre tentado colocar isso em prática, que a perspectiva é de valorização. Afinal, o racismo existe, assim como a escravidão fez parte da nossa história. Precisamos falar sobre isso, mas não podemos resumir a história do povo no Brasil a isso.
E enfatizar o quanto é, por meio de políticas públicas, de ações afirmativas, principalmente, que se percebe uma mudança significative em relação a pessoas negras. Em lugares, por exemplo, da literatura e de poder, como a política.
Então, foi essa a ideia que eu trouxe. Não só abordando, mas também fazendo essa ponte entre Brasil e África, entre os modos como vivemos e como as pessoas no continente africano vivem. Porque por mais que a gente fale, ainda tá muito no imaginário das crianças.
E a África como um todo, são muitos países com culturas diversas, então, tem que trazer referências também.
Tem que ter a ver com as redes sociais também, pois são coisas que as crianças vêem o tempo todo. Elas adoram dançar, então eu tentei trazer essa perspectiva de valorização. A fim de entendermos que a África é um lugar diverso, rico, que produz cultura, conhecimento.
As influências que temos são muitas e elas têm direito de conhecer.
3. O que você acha que não deve faltar, quando falamos de uma educação antirracista dentro das escolas?
Acredito que não podemos esquecer da representatividade, pois as crianças precisam ver pessoas negras nos diferentes espaços e materiais a que elas têm acesso. Desde os brinquedos com os quais elas brincam, à literatura que lêem.
Os livros que estão na escola trazem a história e a cultura do povo africano, afro-brasileiro, nas suas imagens. Nesses livros elas vêem pessoas de diferentes etnias e é importante que isso apareça. O livro didático precisa observar esses aspectos.
Eu atuo numa escola em que muitos estudantes são de ascendência boliviana. Quando eu chego na escola, começo a fazer essa provocação:
“Pessoal, essas crianças bolivianas se vêem aqui? Eu não vejo.” A gente tinha uma cultura muito forte de Halloween na escola. Conversei com as professoras, que desenvolveram um projeto fantástico sobre o dia dos mortos, como acontece na Bolívia e outros países.
Tivemos trabalhos magníficos, apresentações, até as fantasias das caveiras mexicanas e foi muito bacana a gente perceber esse intercâmbio. Quando as crianças bolivianas se sentiram valorizadas de contar a história do seu país e como que isso acontecia lá.
A educação antirracista, também é uma educação não xenofóbica. Então, acho que se eu for falar de educação antirracista, não posso esquecer dessas materialidades e da representatividade.
4. E quais atitudes práticas você acha que a gente pode tomar para aplicar uma educação antirracista na prática? Do jeito que ela deve ser aplicada?
Isso pode acontecer de muitas formas. Além do que falei, acho que o 1° passo é em Fevereiro, quando a equipe gestora recebe os professores, começar a discutir o planejamento. É ali que já precisamos falar de educação antirracista.
Assim os professores entendem que isso vai permear tudo que fizerem no ano todo. Não vai ser uma parada em Novembro para falar de Consciência Negra e não que não seja um mês importante. É um marco importantíssimo e precisamos fazer essa discussão.
Mas eles precisam entender que em cada decisão que tomam, precisam contemplar práticas por meio dos materiais, das pesquisas, visitações, etc.
Por exemplo: quais lugares visitaremos esse ano? Podemos ir em espaços que não são tradicionalmente visitados pelas escolas. Como o Museu Afro; Museu Indígena; Museu das Favelas; etc.
Esses dias eu conversava com uma professora, que estava angustiada por ter de abordar a escravidão. Falei que ela podia falar da escravidão, citando Zumbi, Dandara, que são representantes de resistência. Contar a história de como esse povo foi escravizado e que nos livramos disso por meio de muita luta, por membros de movimentos de resistência.
E que eles existem até hoje, porque a escravidão deixou resquícios. Eu atuo numa escola que vai até o 9° ano, então tem uma diversidade grande. As abordagens são diferentes, mas as crianças precisam compreender que há uma história. Que há contribuições e que a gente precisa enfatizar estas.
5. Quero saber se você pode citar algumas das suas inspirações, tanto no campo pessoal, quanto profissional, por favor.
São muitas. Minha maior inspiração de vida é a minha avó. O nome dela é Dona Lourdes. Tem 93 anos e é uma mulher muito forte.
Mulher negra, mãe solo que criou 3 filhos. Veio do interior de São Paulo para a capital, para trabalhar com 12 anos de idade como empregada doméstica. E se aposentou como bibliotecária.
É formada no ensino superior, na biblioteca Mário de Andrade. Funcionária pública, então ela tem uma história de vida linda, de muita superação, muito estudo. Ela sempre foi uma inspiração para que eu seguisse trilhando esses caminhos.
Trilhei muitos parecidos com o dela, até trabalhar no mesmo prédio a gente trabalhou, que é o prédio da Secretaria de Educação. Na época era Secretaria de Cultura e ela trabalhou lá um tempo.
Minha mãe. Ela é uma pessoa que estudou só até a 6ª série. Tem muita dificuldade na leitura e na escrita, mas sempre disse que eu precisava estudar. Sempre valorizou todas as minhas formaturas, nas quais fez questão de estar presente.
Tem muito orgulho desse meu percurso. Então essas mulheres fortes da minha vida, me inspiram muito.
Profissionalmente são diversas mulheres que passaram por mim e que foram extremamente acolhedoras comigo. Eu digo que sempre tive muita sorte na educação, porque tive o prazer de trabalhar com pessoas que sempre me apoiaram.
Mas tenho uma admiração especial pela professora Nilma Lino Gomes. Tive o prazer de conhecer esse ano e pude dizer para ela o quão importante foi a estrada que ela trilhou. Não é brincando quando a gente diz que ela roçou o caminho, para que pudéssemos caminhar.
Tomara que meninas depois de mim, possam correr nessa pista, porque não foi simples.
Precisamos ter consciência que pessoas como ela foram importantíssimas, para que pessoas como eu tenham chegado onde estou. As políticas afirmativas e tudo que pude desfrutar, para conseguir de alguma forma uma ascensão. Que é social, racial, de muitas dimensões.
6. E se você pudesse resumir em uma frase, o que a educação significa para você?
A educação para mim é o projeto da minha vida. Sou muito grata por tudo que ela me proporcionou. Ela transformou a minha vida e a história da minha família.
Esses dias eu estava conversando com o meu marido e falando dos perrengues que a gente passou na vida. Eu tive uma família estruturada. Meu pai já é falecido, mas foi muito presente. E mãe que cuidou de mim e do meu irmão.
Mas a gente passou por crises muito difíceis. De não ter todos os recursos disponíveis e eu percebo que, por meio da educação, aconteceu uma transformação na minha vida. E, consequentemente, na vida da minha família.
Eu fui estudante de escola pública a vida inteira e sou muito grata por todos os professores que tive, pelas escolas por onde passei. Tenho um orgulho imenso dessa minha trajetória e quero muito retribuir o que pude receber da educação.
7. Tem um podcast chamado “Pra não passar em branco”, da Hariana Meinke. Ela costuma fechar as entrevistas, perguntando o que elas ainda querem fazer para não passar em branco. Então o que você acha que quer fazer ainda, para não passar em branco, Carla?
Eu tenho muitos planos ainda. Quero muito contribuir com essa perspectiva de educação antirracista, para que consigamos enxergar isso acontecendo de verdade. E quero muito que eu não seja a única a fazer isso, sabe?
Porque às vezes a gente percebe que há projetos que se a pessoa não estiver ali empurrando, as coisas não acontecem. Quero muito fazer isso.
Ainda quero muito visitar o continente africano. É uma coisa que está no meus planos para 2024. É visitar e de alguma forma contribuir também. A USP tem um programa muito bacana de internacionalização com países africanos de língua portuguesa.
A universidade de Moçambique é muito próxima e eu tenho feito alguns contatos por lá, porque eu gostaria muito de participar, contribuir e aprender também.
Eu ainda quero muitas coisas e meus planos mudam todo ano. Todo ano eu quero mais e mais coisas. Acho que esse é o motivo da gente estar aqui.
Conclusão
A história de Carla é uma inspiração para quem busca disseminar a educação antirracista nas escolas brasileiras, como ela.
Com iniciativas como o projeto “Antirracismo: da escola para o mundo”, podemos sonhar com um mundo com mais igualdade e justiça para todos.
Você consegue ter acesso a este e outros materiais pedagógicos, se tornando parceira da Estante Mágica em 2024. 😉
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